Quero comprar uma vitrola. (Sim, eu sei que não é bem assim que se começa um post de cerveja. Mas eu vou chegar lá)
Tenho por hábito, quando estou sozinha, de colocar um som bem bacana, diminuir a luz da sala, colocar uma roupa confortável após um banho demorado, deitar no chão da varanda do meu apartamento, pegar o meu livro e, por fim, abrir uma cerveja para acompanhar esse momento. Poucas coisas me deixam tão feliz e, ao mesmo tempo, tão conectada a todos esses elementos que isso.
E foi querendo comprar uma vitrola que me dei conta de que se percebe um gosto ou uma sensação ou som através de todos os sentidos. Se uma cerveja não despertasse o meu olfato, talvez o sabor dela não fosse aquele. Ou, a ausência daquele “tsss” ao abrir a garrafa, após um dia difícil, matasse a sede de uma forma diferente. Ou a temperatura do copo com aquela barley wine, rolando na mão, esperando aquecer, não te dissesse que sim, aquele é o momento ideal de prová-la e desfrutá-la. É energia. Conexões. Sede.
Cerveja é aroma, sabor, presença, calmaria. Ou, baseado nos sentidos, é olfato, paladar, visão e tato. É memória episódica. Olfativa. É o preciosismo do parnasianismo. É aquela pitanga na IPA que lembra a casa da vó no interior, é aquele chá de hortelã que você tomava quando criança, numa witbier. É o cheiro de terra molhada do campinho de futebol, da época de moleque, que aparece numa cerveja inglesa. É o gosto do primeiro, segundo e terceiro beijo depois de um sorvete de chocolate. É o gosto amargo da paixão não correspondida da adolescência. São as doses de stout para entregar a monografia. É a saudade na lata. É a homenagem à sua avó em cada copo na mesa do seu bar. É o gosto daquela Weiss na primeira viagem à Alemanha paga com o suor de meses de trabalho (ou não). São as rabanadas do Natal com explosão de canelas, açúcar e por que não, mel? A mexerica que você ganhava na merenda da escola. É aquela lager, mainstream (para de ser fresco, até outro dia era isso que você bebia) no boteco da faculdade com aquele amigo que não vai mais voltar.
É a associação que só faz sentido para você, suas lembranças e memória sensorial. E isso é fundamental para uma análise crítica e completa de uma bebida. Cada cerveja que abrir, faça o exercício de prová-la de algumas formas. Feche os olhos e preste atenção no aroma, no que remete técnico-emocional, e beba. Agora, abra os olhos, e repita o processo com o nariz tampado. Veja a cor, a espuma, os detalhes. Prove. Se você for uma pessoa bem aplicada, experimente só observá-la, sentir o aroma, a temperatura na mão. Aguce os seus sentidos, eles te ajudarão na sua vida profissional cervejeira. Associações são fundamentais para se descrever a complexidade de uma cerveja belga, por exemplo. Aprenda, exercite. Afinal, uma cerveja de trigo só lembra banana e cravo, porque os itens individualmente, fizeram parte da sua vida.
Tem explicação? Se você buscar pelo tema no google, muitas informações bem legais vão aparecer sobre a memória e o quanto ainda somos leigos nesse assunto. Para mim, hoje, enquanto escrevo esse texto, cerveja é Ray Charles tocando na vitrola, com aquela camiseta velha e surrada, vendo a lua e bebendo a minha cerveja no gargalo. Ah, e cheiro das damas-da-noite, plantadas no meu prédio. Afinal, nada é completo se for pela metade. Óbvio, mas muita gente se esquece disso.
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